domingo, 12 de fevereiro de 2012

O Amor na DOR

O amor na Dor
Vereadora eleita em São Paulo com 50 mil votos, a apresentadora de tevê Sônia Francine, a Soninha, relata os 18 dias em que a filha Júlia, de 7 anos, ficou internada por causa de uma leucemia e narra a batalha das duas pela cura
No elevador, do 1º para o 3º andar, a ansiedade brilha nos olhos de Júlia Terra Saula. Assim que a porta se abre, um “tio” logo lhe entrega um chapéu cor-de-rosa em forma de gato. Com ele na cabeça, a menina de 7 anos vê as bexigas penduradas no teto, pega um copo de Fanta laranja e corre em direção à fila do cachorro-quente. Eram 14h de uma quinta-feira em São Paulo, início da festa de Dia das Crianças no Itaci (Instituto de Tratamento do Câncer Infantil, do Hospital das Clínicas). Júlia é a caçula de três filhas da apresentadora de tevê Sônia Francine, 37, a Soninha, e de Marcelo Terra Saula, 33. Manchas roxas pelo corpo, os primeiros sinais de que algo estava errado, surgiram no início de setembro: Júlia chegava da escola cada dia com uma nova mancha. A irmã pensou que ela estivesse brigando na escola até que apareceu um roxo no meio do peito. Gelei. Conhecia os sintomas e pensei na hora: “Ai meu Deus, pode ser leucemia”. O homeopata que trata da família viu e pediu um hemograma. Quando soube do resultado, ele ligou e falou: “Corram para o hospital, que é sério”. Já imaginei que era leucemia. Fiquei muito mal nessa hora, chorei muito. Me escondi para ela não ver que eu estava chorando. Passei o dia tentando não chorar mas só consegui às vezes. Ela perguntava: “Mãe, por que você está de óculos escuros?”. Eu nunca uso. E dizia: “Estou com uma super dor-de-cabeça”. A dor-de-cabeça virou o álibi para eu chorar. Fiz um filme, o pior possível: ‘Perdi minha filha, aconteceu comigo’. Não adianta pensamento positivo. Você não sabe quando vai morrer. Faz-se meditação para hora da morte diariamente no Budismo. Então, sei que a vida está em risco e sempre me preparei para as perdas. Ainda assim, pensar na possibilidade da Júlia não fazer 8 anos (em 4 de abril), foi uma facada, doeu muito. Não deu desespero, mas dor, angústia. Por que criança morre?’’
O Itaci não tem cheiro nem clima de hospital. São 17 leitos e uma área de recreação com escorregador, quebra-cabeça, brinquedos, computadores, televisores, DVD. Lá, o tratamento vira uma pausa na diversão. Júlia, em poucos dias, desdenhava para esticar o braço e receber transfusão de sangue e plaquetas, que previnem hemorragias – ela estava com 22 mil plaquetas, o normal é 250 mil. Um dia, disse aos pais, que se revezavam para dormir com ela: “Vocês vão jurar que, quando eu precisar de hospital, irão me trazer para cá”.
Levou cinco dias para Soninha saber a gravidade da leucemia. Júlia tem um tipo de leucemia mielóide aguda. É comum em adultos e atinge crianças em apenas 20% dos casos. Dos sete subtipos dessa doença apenas um não exige transplante de medula, justamente o de Júlia. Suas chances de cura, que seriam de 25% a 30% sem transplante, passaram para 70%.
Antes de saber se o transplante seria necessário, uma médica perguntou se Júlia tinha irmãos. Eu disse que ela tinha duas meias-irmãs, do meu primeiro casamento. A médica fez uma careta, do tipo: ‘Não serve’. Na hora, pensei: por que não tive outro filho com o Marcelo?’. O banco de doadores de medula óssea tem 80 mil cadastrados. A chance de compatibilidade é de 1 em 1 milhão. Ou seja, a minha chance de achar um doador compatível para Júlia era de 0,08. Até eu saber que ela não precisaria de transplante, eu pensava: ‘Será que, se eu tiver filho agora, ajuda?’. Pensei em ter outro filho, lógico! O início do tratamento é uma fase crítica e poderia provocar uma hemorragia ou uma trombose. Minha filha correu risco de morte.’’
Júlia colocou um cateter e recebe um remédio (ácido retinóico) que faz a célula cancerígena voltar a ser sadia. “Ela também já fez uma sessão de quimioterapia para matar células doentes. E fará outras durante 2 anos”, diz o oncologista pediátrico Vicente Odone Filho, do departamento de pediatria da Universidade de São Paulo. A doença de Júlia atropelou um momento que deveria ser só de felicidade para Soninha. No domingo 3, nove dias após o diagnóstico, ela foi eleita vereadora em São Paulo com 50.989 votos. Naquela manhã, ela votou cedo e foi para o hospital, onde passou o dia.
A gente vê alguma coisa pela tevê, mas de vereador ninguém fala. O médico veio me contar no quarto. Entrou e disse: ‘Parabéns! Os números são muito bons!’ Falei: ‘Do exame?’ Afinal, todo dia tem exame. E ele: “Não, da internet. Já tem 95% das urnas apuradas e você está dentro, parabéns”. Fiquei feliz com a eleição e a Júlia também ficou superfeliz.’’
Das 250 pessoas presentes na festa do Dia das Crianças no Itaci, Júlia era uma das poucas crianças que não perderam os cabelos por causa da quimioterapia. Com máquina fotográfica na mão, registrando cada sorriso da filha, que assistia a uma apresentação de balé, Soninha conta que certo dia perguntou a Júlia se ela gostaria de cortar o cabelo um pouco mais curto. “Ah, mãe, deixa eu aproveitar o cabelo enquanto eu tenho”, respondeu a menina. Em duas semanas, porém, o cabelo de Júlia começará a cair.
Quando a Júlia foi se internar, disseram a ela que havia uma amiguinha de 8 anos que iria ficar contente em conhecê-la.
– Mãe, como será essa menina (Luana)? Será que tem cabelo curto, comprido?’
– Júlia, não sei se você reparou, mas quase todo mundo aqui é careca.

– Por quê?
– Porque eles tomam um remédio que faz o cabelo cair. Como aquela história do Cebolinha, da gripe carecal.

– O meu cabelo vai cair também?
– Vai.
– Ai, mãe, os meninos vão me zoar muito. Não quero ir careca para a escola.

Disse que ela não iria para a escola e que ficaria lá. Ela assimilou de cara o fato de que quem entra lá fica careca. Consegui falar na boa porque nessa hora eu já estava bem também. No primeiro dia vem tudo, é uma avalanche, eu pensava na minha filha sem cabelo e era mais um motivo de tristeza. Na primeira vez que fui ao Itaci e vi aquele monte de crianças me deu um aperto enorme. Mas aí passou. Quando eu falei com ela, eu já estava bem. A Júlia adorava a careca da Luana, vivia pendurada nela. Ela andava atrás da Luana, encostada na careca dela e falava: ‘Ai, mãe, é tão quentinha’.’’ No sábado 16, Júlia foi ao cabeleireiro aparar a franja e diminuir o comprimento. Havia recebido alta no dia anterior, após 18 dias internada. À noite, encontrou na porta de casa duas cestas, uma com frutas e outra com brinquedos. No domingo, amanheceu desenhando e escreveu um bilhete de agradecimento aos vizinhos que foi colado no elevador. “Júlia seguirá com o tratamento em casa e duas vezes por semana virá ao ambulatório para passar o dia tomando medicação”, explica Odone. “Hoje, Júlia praticamente não tem células cancerosas no sangue. Possui ainda na medula. Mas tem tudo para fazer valer os 70% de cura.”
Os gestos de generosidade, como o dos vizinhos, pontuam o tratamento. Soninha conta que os coleguinhas da escola enviaram cartas, que foram lidas por ela enquanto Júlia tentava adivinhar o remetente. A prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, fez uma visita no Itaci e presenteou a menina com uma boneca Emília.
Um cara de João Pessoa escreveu: ‘Não posso ir aí doar sangue, mas vou doar aqui para quem precisa’. Outra carta dizia: ‘Dei um pássaro engaiolado. Pássaro solto é símbolo de vida. Comprei um passarinho. Ele era verde, cor da esperança, o soltei e ele saiu voando. Quando a Júlia estiver curada me avisa que vou soltar um branco’.’’
De volta para casa, Júlia pôde devorar sucrilhos com leite, mas terá a alimentação controlada. Deve ainda evitar aglomerações, atividades físicas e poeira. “Vamos, passo por passo, buscar a cura”, diz Marcelo. Soninha prevê mais mudanças em seu cotidiano “Tem dias que mal vejo a Júlia. Isso tem de mudar. Preciso ficar menos disponível para palestras, debates, reuniões e tratar minha família como agenda, reservar horários para ela”, diz ela. Soninha confia nessa mudança, assim como confia na cura de Júlia.
Esperança é muito vã, é uma torcida. Confiança é melhor e é isso que eu tenho. Confiança na Júlia, nas pessoas que estão cuidando dela, em mim e nas orações.’’

ISTO É - Edição 272 - Outubro 2004




 

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